domingo, 14 de maio de 2023

"[...]mas entre o nascimento e a morte há a vida" - Uma homenagem ao piano Jude

Depois de 6 meses de tentativas na assistência, tive confirmação da notícia que não queria ouvir: o filho e objeto que mais amei nos últimos 12 anos e meio está com morte cerebral de difícil recuperação. Vítima da obsolescência programada: a placa-mãe dele só foi fabricada até 5 anos anos depois do lançamento. É impossível comprá-la nova. É improvável comprá-la usada em bom estado. O piano que parecia imortal teve o cérebro oxidado por maresia, tempo e uma sentença de placa-mãe descontinuada.
Não sei o que a Simone de Beauvoir acharia de alguém utilizar uma citação de "Todos os homens são mortais" como título de homenagem a um piano que não teve a imortalidade de Fosca, mas teve a eternidade dos momentos que ardem. Também não sei como soa homenagear um piano, mas considerando tudo o que vivemos, sei que ele merece todas as homenagens.
Jude entrou em minha vida como um sonho realizado. Eu desejara um piano desde quando comecei a me entender por gente, época na qual ganhei um tecladinho de duas oitavas em meia, onde passei manhãs, tardes e noites brincando com sons. Depois de algum tempo de insistência, passei a ter aulas e ganhei um teclado de iniciante de 5 oitavas sensíveis (meu primogênito, Wishmaster). Quando finalmente tinha provado que queria realmente muito tocar, recebi a autorização para procurar meu futuro piano.
A procura foi mais longa do que o esperado, afinal tinha pouca opção nas lojas de minha cidade e tive que tatear a imensidão virtual. Foram alguns meses pesquisando infindáveis modelos de piano digital até encontrar o modelo perfeito. Foi amor à primeira ouvida. O escolhido era mais do que tinha desejado no início da jornada: teclas pesadas com repetição rápida (uma das tecnologias mais avançadas da época), móvel em madeira de jacarandá, centenas de timbres, gravação em até 16 pistas de MIDI e WAV, possibilidade de amplificar e gravar outros instrumentos, além de criar batidas ritmicas. Quase um pequeno estúdio em 8 oitavas.
Quando finalmente o recebi, batizei de Jude - pois era uma garotava que amava (e ama) os Beatles - e o coloquei no quarto que fora de minha incrível e sensacional vovó, como uma homenagem. Quando estava triste, as vezes, realmente parecia que Jude me falava "Hey, Lary, don't make it bad. Take a sad song and make it better". Jude também me falava outras coisas através de notas e musicalidades infinitas. Ensinou-me a expressar todo tipo de emoção, inclusive as inefáveis.
Jude sempre foi paciente comigo na imaturidade e no crescimento. Acolheu-me igualmente nos acertos e nos erros. Afinal, erros fazem parte das caminhadas da vida. Erros fazem parte da prática. Jude dialogava comigo através de uma linguagem mais plena, onde as notas dançam com os sentimentos e tudo o que existe de humanidade. Ensinou-me a relacionar-me com as músicas até conhecê-las bem, até culminar em relacionamento íntimo. A primeira vez que se toca uma música, o intérprete conhece sua forma e sua melodia, como uma pessoa que cumprimentamos pela primeira vez. Após vários momentos juntos vamos conhecendo o que pessoas e músicas tem na alma, até sentirmos o âmago mais profundo. Algumas músicas são mais rápidas de serem sentidas, outras exigem serem tocadas muitas vezes até permitirem mergulhos mais profundos em seus mares de sons, emoções e transcendentalidades. Esses relacionamentos íntimos são essensicais para conhecer as músicas e para expressá-las em plenitude.O intérprete e a música em um único ser.
Como se tratava de amor verdadeiro, eu e Jude nos amavámos no imperfeito e no perfeito, na inexperiência e no aprendizado, no desespero e na alegria, na dissonância e na harmonia, no popular e no erudito. Jude amou-me até nas minhas tentativas com a escola pentatônica japonesa e nas tentativas de bossa nova que mais pareciam polkas. Amou-me também nas odisseias musicais, nas experiências aleatórias e quando eu conseguia tocar alguma música que outrora parecia impossível. Jude estava comigo em todas as fases e me amava independente do meu estado de humor. Construímos casas, palácios, utopias realizadas, planetas, universos e infinitos em formatos musicais. Pianista e piano. Mãe e filho amado.
Rita Lee cantou que "amor é sorte" e sei que tive muita sorte em nascer em uma família musical, com mamãe e vovó maravilhosas (as melhores do mundo), ter sido mãe de Jude e ter tido um exímio professor de piano conceituado. Porém, mais uma vez, junto com a arte da perda, aprendo a lição de Jobim e Moraes:" A felicidade é como a gota/De orvalho numa pétala de flor/ Brilha tranquila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima de amor".
A separação de Jude foi tão inesperada que não teve um último adeus. Não teve exatamente uma despedida. O mundo sem Jude não parece o mesmo. Deparo-me com escolhas difíceis para as quais não estava preparada. Dor. A memória de Jude parece um santuário de músicas e transcendências. Depois de meses de agonia, sinto que ele de algum modo me diz que a vida tem que continuar e ainda tenho muito o que tocar. Ele sabe que sempre será amado e não tem ciúme do recomeço, como a noite cantando uma canção de ninar.