Dorothy caminhava e caminhava pelo
seu lar, como se cada passo fosse sua representação no estar-mundo: uma prova
invisível de que sua alma estivera ali. Em seu sorriso avoado, acabou topando
com o espelho novo da sala. Com um ar pensativo vislumbrou aquele rosto que
agora tinha 22 anos. Olhou de uma maneira tão questionadora ao espelho como
se quisesse que ele respondesse quem era ela e quem era ela perante esse mundo
e perante sua própria vida. Com olhos de aurora, ela voltou a dançar a dança da
silenciosa atmosfera de seu lar, enquanto pensava na vida.
Ela sempre desejara ir além do arco-íris. Ir além
das imposições do mundo e alcançar a liberdade plena, o vôo pleno e a
transcendência que ela tanto almejara. Talvez o passar dos anos junto com o
traço de natural desilusão que eles dão, deturpou um pouco aquela metaforizarão
do arco-íris, mas o desejo de ir além dele nunca deixou de pertencer ao seu
ser.
Ela chegava a acreditar que só seria plena e
feliz quando conseguisse atravessar o arco-íris, por mais difícil que isto parecesse.
Após um dia de calor, um dia chuvoso e com sol
se sucedeu: era o casamento da raposa. E nesse dia o arco-íris lhe aparentou
maior e mais próximo do que todos os demais dias de sua vida.
A princípio ela achou quase infantil aquele seu
enorme desejo de ir além do arco-íris, os anos que ela ganhara zombaram daquela
idéia. Mas mesmo assim, ela decidiu começar a andar em sua direção. De repente,
ela vislumbrou uma raposa vestida de noiva indo em direção ao altar de uma
igreja feita da árvore que era filha da Amazônia com a seriedade do espírito
humano. Era uma igreja que era ao mesmo tempo de madeira, um tronco enorme em
forma de igreja ao mesmo tempo em que era de uma arquitetura que parecia uma
mistura da arquitetura gótica com a do Oscar Niemeyer. Algumas folhas eram em forma
de cruz, de ank, de Buda, de orixás e aparentemente havia folhas no formato do
símbolo de todas as religiões. Havia até uma folha que só tinha contorno e nada
dentro, representando os ateus. Também havia folhas em forma de símbolos da
ciência, da música, da política e de todas as criações humanas que pudessem ser
seguidas como se fosse uma religião. Aquelas folhas institucionalizavam aquela
instituição. Antes de entrar na igreja e escapar do alcance de sua visão,
a raposa olhou com olhos formais para Dorothy e disse:
- Vai, corra atrás do arco-íris.
Naquele momento era como se Dorothy Waters ouvisse a sua própria voz humana e
interna. Ela não sabia, mas naquele instante toda a humanidade queria em seu
âmago correr atrás do arco-íris.
Dorothy Waters correu decidida a alcançar o arco-íris. Ela correu, correu.
Correu até tornar-se indiferente ao tempo, as vias, à sociedade e a todas as
outras coisas que não fossem seu objetivo. Ela correu apenas pensando naquilo,
no atravessar do arco-íris. Sem perceber, ela atravessou as horas, os dias, os
limites dos territórios e qualquer instituição e sistematização que estivessem
a sua frente. Ela atravessara rios, montanhas, religiões, partidos políticos,
salas de aulas, escritórios de trabalho e até mesmo as relações sociais. Correu
até que incapaz de calcular quanto tempo ou quilômetros tinha percorrido, ela
finalmente alcançara o arco-íris. Finalmente sentiu-se prostada e feliz de uma
maneira que parecia irreal ao chegar ao outro lado, ao fim do arco-íris.
Ela ficou impressionada com aquela grandiosidade em raiz coloridos. Ela estava
toda iluminada do colorido de sua felicidade. Mas no final do arco-íris não havia
um pote de ouro como as lendas acreditavam, nem exatamente o que a humana mente
de Dorothy Waters imaginava de plenitude: havia o lado escuro do arco-íris.
Quando se atravessa o arco-íris, sempre se encontra o lado escuro do arco-íris,
apesar de que alguns que o alcançaram decidiram simplesmente ignorar o lado
escuro do arco-íris e não ganharam nenhuma luz de sabedoria em sua jornada até
ali. Mas Dorothy não podia ignorar esse lado e, sem perceber, ele a abraçou.
Nesse lado escuro Dorothy percebeu que aquela escuridão era a metáfora de seu
não-ser e de todas as limitações de sua condição humana. Ele a fazia sentir tão
humana que chegava a um ponto que não dava mais para fugir dele e posteriormente,
ela tornava-se parte dele. Ele, como se fosse um buraco-negro, absorvia o seu
colorido e a sua luz branca que se dividia em 7 diferentes estágios e
transformava a tudo em seu breu.
Ele a acorrentava com correntes feitas com a
própria fragilidade dela. Ela era obrigada a encarar que era uma humana, nada
menos que uma humana e jamais seria mais que uma humana. Por mais
extraordinários que seus feitos pudessem ser, por mais impressionante que seja
atravessar o arco-íris e por mais transcendência que ela conseguisse em sua
vida, ela estava condenada a jamais ser mais do que ela mesmo, do que um ser
humano. Naquele breu não havia muita diferença entre as idéias de glória e
invisibilidade social, nem entre o tudo e o nada. No lado escuro do arco-íris
se chegava a visão de algo maior, como se fosse o ponto de vista do próprio
universo e então todas as vidas humanas e mesmo o planeta terra pareciam apenas
poeira ao vento incomensurável do universo. Ao mesmo tempo em que naquele mesmo
ponto de vista, cada pequeno ato de humanidade ganhava uma nova e iluminadora
importância. Um aperto de mão não era só um aperto de mão, era um sinal de
igualdade, fraternidade e respeito perante duas vidas. Era um sinal de mútuo
contemplamento à maravilhosa graça de viver. Um abraço era um laço eterno que
juntava duas almas. Um sorriso verdadeiro era um sol que cativava a atmosfera
alheia. Uma briga podia ser tanto um cortar de laços quanto algo que provia de
um lado inverbalizável da natureza humana.
Dorothy sabia que paradoxalmente estaria para sempre sozinha e acompanhada ao
mesmo tempo. Sozinha posto que sua individualidade é inviolável e ninguém, por
mais que ela amasse, poderia percorrer todos os caminhos que a faziam ser ela,
tendo a individualidade plena algo de inalcançável. Acompanhado porque mesmo
nos momentos de maior solidão, ela estaria acompanhada por alguém pensar nela
ou mesmo pelo espírito de alguém que a amou ou mesmo por algo que ela acredita
que invisivelmente a acompanha - o que uns acreditam ser Deus; outros, uma
força; outros, a música, entre outras derivações.
Ela sabia que uma só flor podia conseguir florescer todo um jardim da vida e
uma só tesoura, cortar todos os laços.
Em um determinado momento que pode ter durado um
segundo ou todo um completar de existência ela sentiu o beijo do lado escuro do
arco-íris e lhe invadiu as lembranças e o sentir de tudo o que havia tocado,
todos os abraços que tivera dado, todos os beijos que havia beijado, tudo o que
havia sentido, tudo o que havia visto e tudo o que havia percorrido em sua
vida. Em tudo o que ela pensou em sua estrada e até no que ela deixou de ver e
que agora sentia.
O lado escuro lhe concebeu toda uma epifania.
Uma epifania que como se fosse uma morte transpassou todo o seu corpo de uma
sensação tão intensa e tão humana que sentiu todo o seu ser morrer com aquele
tão alto grau de excitação dos sentidos. Ao mesmo tempo em que como um renascer
ela sentiu todas suas feridas morais se curarem e que de algum modo nascia de
novo, como um novo ser dela mesma. Por um momento, ela sentiu-se como aquele
que se deitou em um leito de liberdade e nunca mais voltou ao mundo dos homens.
Ela estava livre de todas as imposições humanas. Quase uma plenitude de
liberdade que era apenas limitada pelas suas próprias limitações. Ela viveu um
lapso de etéreo.
Mas a crueza do mundo e a própria saudade a fez abrir novamente os olhos. Por
mais que se sentisse plena em sua solidão e quase-encontrada liberdade,
ela precisava voltar ao seu lar. E consequentemente para as restrições
mundanas. O lado escuro do arco-íris a libertou de si mesmo, ao mesmo tempo em
que era acorrentada ao mundo conforme ela voltava a este. Ela sabia que iria que
ter encarar e enfrentar a crueza terrestre e estava disposta a ter sua
liberdade diminuída para voltar ao lar.
Seus sapatos vermelhos cintilam e mais uma
constelação se forma no céu.